Boa pinta, alto e corpo atlético, ele jogava como zagueiro-central, sendo um autêntico espanador à frente da zaga, além de subir bem para as cabeçadas nas bolas aéreas. Tanto na sua grande área como nas dos adversários, quando era preciso arriscar, quem sabe, um gol.
Quando comecei a frequentar o imponente estádio da Tuna, o conhecido “Campo do Souza”, o baiano Gilvandro já estava há uns três anos jogando pelo Papão. Corpulento e “sarrafeiro” quando fosse preciso dividir uma jogada mais ríspida, ele era um dos ícones da equipe naquele tempo remoto em que o time bicolor voltara à hegemonia do futebol paraense, depois de quase 10 anos sem ganhar um campeonato. O “Bacalhau” –apelido que eu nunca soube sua origem – tinha status de ídolo entre os torcedores do Paissandu.
No começo dos anos 1960, Gilvandro deixara o futebol, mas continuou a residir em Belém pois casara com uma jovem da elite local. Mas continuava a ser o galã de sempre, com muito prestígio entre a mulherada. E um “senhor copo” em termos de bebida. Quando o conheci mais de perto, passei a observar que ele era um farrista mais de bebida do que de mulher. Mas se dessa “liga,” a conexão seria ideal,
Com estudo que lhe garantiu um bom emprego na Prefeitura de Belém, ele galgou o elevado cargo de tesoureiro da comuna metropolitana. E por lá ficou durante quase dez anos. Até que um dia, em princípios da década de 1970, estourou um escândalo envolvendo um “rombo” elevado nos cofres públicos. Quase tudo recaiu sobre ele. Justificava-se como sendo generoso em conceder “vales” aos amigos que não teriam ressarcido o erário municipal. O déficit foi se acumulando. Até chegar ao “estouro da boiada”. Enrolado em inquérito policial, ele fugiu de Belém e foi se homiziar no interior de seu estado natal. Sumiu de Belém, embora pouco tempo após, depois que a poeira se esvaíra, ele estivesse de volta. Para sentir a ingratidão dos amigos, principalmente aos que beneficiara no exercício do cargo público. Tinha acolhida de um ou outro mas apenas para nas rodadas de boemia. Ele sempre fora uma pessoa de convívio social elevado. Talvez até por influência da família da esposa. Ocioso, passava o dia todo perambulando pelos bares. Saindo de um para outro, até a madrugada. Bebia bem. O extinto Bar Fazzano, na Manoel Barata, próximo à avenida Presidente Vargas passou a ser quase que seu lar ou “escritório”. Chegava pela metade da manhã e só saia quando fechava. Em companhia assídua de um advogado, amigo seu, certo dia houve um desentendimento entre ambos, e o advogado o alvejou à queima roupa com três tiros. E fugiu, deixando Gilvandro sozinho. O ex-jogador levantou-se, mesmo baleado e cambaleante foi até à rua, entrou em um taxi que o conduziu ao Pronto Socorro da rua 14 de Março. Salvou-se após alguns meses em tratamento. Mas retornou à mesma vida boemia de outrora. Talvez até em maior intensidade. Foi envelhecendo rapidamente e perdendo aquela feição de beleza máscula. Era quase um farrapo do passado. Relacionou-se com uma magistrada bem mais velha do que ele, que lhe deu guarida até a morte, com menos de 50 anos. Morreu de cirrose hepática em fins dos anos 1980.
Eu o conheci no Bar do Biriba que ficava na rua Carlos Gomes e onde eu costumava jantar quando trabalhei no jornal “O Estado do Pará”. Ele estava querendo vender um apartamento que pertencia à família, mas ainda não se desquitara da esposa. Mostrei-lhe o impedimento legal sem anuência da mulher. Eu entendia, por óbvio, o que desejava que eu conseguisse. Porém, nunca exerci a profissão de advogado prometendo “milagres” ou cometendo tramóias em benefício de meus clientes. Durante os 20 nos em que atuei, abstraia qualquer tipo de apelação que até pudesse parecer natural em defesa de quem contratava os meus serviços profissionais. Mera questão de natureza ética e formação familiar. Sem censurar, entretanto, os que não pensavam ou não pensam como eu.
O saudoso China, cracaço da Tuna a quem muitos atribuem a criação da “folha seca” que consagrou Didi, quando deixou o futebol montou uma grande oficina de consertos de automóveis, localizada na avenida Alcindo Cacela. Eu levava meus carros quando precisavam de consertos mais urgentes. E costumava ficar conversando com ele. China era um altruísta que tinha como missão dominical visitar ex-colegas de seu tempo de futebol. Aos mais necessitados, levava uma cesta básica de alimentos. Aos outros, como Gilvandro, apenas pelo prazer de rever o colega. Contou-me que ainda chegou a ver o amigo em seus últimos dias. Deitado em uma rede com uma garrafa de bebida embaixo. Quase totalmente embriagado. Dizia balbuciando que sabia estar chegando ao fim. Mas que preferira morrer assim.
Destino? Desgosto? Auto destruição inconsciente, vazio existencial pela velhice que chegara? Ou apenas “a vida como ela é”, relembrando o ácido axioma do genial Nelson Rodrigues?
Um bom cabeceador à frente e atrás de sua área. |
Eu o conheci em 1975, no bar Fazano. Eu tinha 14 anos, estava andando com uma tia no comércio, quando ela parou, e entramos no bar, ela foi falar com ele, bonitão, pinta de galã. Lembro de ele comentar com ela, que tinha comprado um Galáxia comodoro, que estava estacionado na frente do bar. E antes de irmos embora, Gilvandro perguntou se eu jogava bola, e que eu parecia o Mário Sérgio, volante que jogou no Vasco. Que fim triste do Gilvandro, eu não sabia.
ResponderExcluirarmandocabano@gmail.com